domingo, 15 de novembro de 2015

Inimigo imaginário e forças formadoras de opinião: o caso dos terroristas islâmicos.

A mais recente onda de violência em Paris, capital francesa, é o destaque principal da imprensa mundial. Podemos afirmar que na atualidade existem fatos que podem ser debatidos por bilhões de pessoas ao redor do mundo, isto graça ao estágio de desenvolvimento dos meios de comunicação, que determina as conversas, sentimentos, pensamentos de indivíduos vivendo na Austrália, na Bolívia, Singapura, Rússia, Nova York, etc. Portanto, o poder dos meios de comunicação em difundir notícias e determinar temas relevantes de serem debatidos é o ponto de partida para compreendermos um aspecto da realidade social contemporânea, realidade esta que alguns chamam de “capitalismo global”[1]. Qual aspecto que aqui queremos evidenciar? Aquele que trata dos chamados atentados terroristas, nome genérico para atos de violência cometidos por grupos religiosos identificados com a religião islâmica. Antes se faz necessário notar que a palavra terrorista já foi utilizada em outros contextos históricos para designar outros grupos, tais como tendências do movimento anarquista na virada do século XIX para o século XX, grupos de esquerda durante a ditadura militar no Brasil nas décadas de 1960/80, militantes anti-apartheid na África do Sul, grupos de esquerda da Itália dos anos de 1970, jovens palestinos, etc. Desde o início dos anos de 1990 a palavra terrorista é quase sinônimo de islâmico, mulçumano, isto é, vincula-se o terrorista aos membros da religião que domina o norte da África, o Oriente Médio e importantes regiões da Ásia, além de formarem extensas comunidades em países do Ocidente.
Quando surge historicamente a questão do terrorismo islâmico? A primeira grande ação a repercutir mundialmente ocorreu dentro do estacionamento das torres gêmeas, com a explosão de carros bombas em 1993. No ano seguinte foi a vez da Associação Mutual Israelita na Argentina explodir pelos ares. Nos anos seguintes as explosões foram em embaixadas dos EUA em países africanos. Assim se fez a fama nos noticiários de nomes como Osama Bin Laden, que simbolizou a nova geração de terroristas. A década de 1990 é o período histórico imediatamente posterior ao fim da Guerra Fria, do esfacelamento da União Soviética e de toda uma geração de terroristas “comunistas” que ganharam vida nos filmes de Hollywood. Os EUA já não tinham mais um inimigo comum que representava os valores opostos à sua civilização, mas como veremos é necessário tal figura.
Pela ousadia do evento e a repercussão mundial causada, o impacto dos aviões contra as Torres Gêmeas em 2001 abriu uma nova era de conflitos sociais. Com o término da Guerra Fria, os EUA tinham agora condições de avançar e conquistar novos mercados em regiões que antes estavam sob controle ou influência direta da União Soviética, notadamente o leste europeu, o sudeste asiático e países da região do Oriente Médio. Já nos anos de 1980 os EUA armaram e treinaram Sadam Hussein, Osama Bin Laden, as lideranças do Boko Haram, assim como fizeram com as forças militares que atuaram na repressão e nos massacres aos movimentos sociais na América Latina durante o século XX, e ao redor do mundo, ainda hoje. O objetivo inicial de treinar grupos de origem islâmica era o de conter o avanço das forças imperialistas da União Soviética, mas acabada a URSS sobraram armas e milhares de assassinos bem treinados. Com o avanço do capitalismo para as novas regiões, os grupos antes treinados passaram a se opor ao modo de vida capitalista e aos valores representados pelo ocidente, o exemplo mais consagrado pelo sucesso foi a organização Talibã (estudantes na língua pachto) que governou o Afeganistão de meados dos anos de 1990 até o ano de 2001.
Feito este breve e sumário roteiro histórico voltemos à questão inicial: os atentados terroristas como tema mundial. O que significa os atentados terroristas serem objeto de conhecimento instantâneo e quase-universal? Significa que uma corrente de opinião se forma sobre o tema, sendo pois hegemonizada e controlada pelos meios de comunicação em massa, que estão nas mãos do capital comunicacional oligopolista internacional. Inseridos no contexto histórico que apontamos (a relembrar: avanço do mercado capitalista para novas regiões do mundo, hegemonia do império estadunidense, milhares de forças paramilitares armadas e treinadas) os atentados terroristas (uso da violência para exterminar vidas civis) são expressão da disputa de forças entre o império dos Estados Unidos e povos insubordinados, que enfrentam o avanço do mercado capitalista sobre sociedade ainda não totalmente capitalistas, e totalmente dominada por valores culturais pré-capitalistas, marcados principalmente pelo predomínio da ideologia religiosa.
O nosso ponto de partida nos dá representações evidentes: os terroristas são fundamentalistas islâmicos. Essa representação é transmitida, sobretudo, pelos meios de comunicação (mas também por intelectuais – como Samuel Huntington e sua ideia de choque de civilizações que defende que os povos de cultura islâmica não possuem condições para absorver os valores ocidentais – por políticos, pela burocracia do estado com seus militares e burocracia civil, organizações da sociedade civil, etc.). No universo de informações veiculadas dois pontos são o eixo: terrorismo e islâmico. São as duas informações básicas que servem para formar opinião e simultaneamente desinformar das verdadeiras determinações sobre algo, posto que de um lado, apresenta os autores do fato, e por outro lado, produzem confusões generalizadas sobre os acontecimentos. Como era de se esperar, a notícia simplesmente apresenta o ocorrido, trata-se do mecanismo básico para finalizar moldando uma opinião: o fundamentalismo islâmico é a rejeição dos valores ocidentais, da democracia, do capitalismo, das instituições.
Nos atentados de Paris nessa sexta-feira 13 de 2015 os culpados foram prontamente identificados (e até mesmo no tweeter os prováveis responsáveis assumiram a autoria): o grupo terrorista Estado Islâmico, também chamado de Isis (em inglês) ou Daesh (árabe). A informação não é questionada, é modelada, reproduzida e assimilada em todas as regiões do mundo. O principal agente transmissor são os meios de comunicação em massa. As pessoas têm então contato com o que aconteceu através das notícias veiculadas, desta forma as opiniões se formam por meio dos meios de comunicação. O que são as opiniões? Segundo Nildo Viana, opiniões são “um conjunto de ideias (bem como afirmações e posições) expresso pelos indivíduos sem maior coerência, rigor, fundamentação, sendo geralmente substituíveis com relativa facilidade” (VIANA, 2015a). Conforme a torrente de informações obtidas, e geralmente tais informações são simples, com poucas variações de conteúdo e reforçando uma ideia básica, os indivíduos moldam suas opiniões, constantemente reproduzindo o que assimilou de forma não refletida e por vezes sem coerência com outras opiniões expressadas. Desta forma, os meios de comunicação são um dos principais agentes, ou forças de formação de opinião, com força sobretudo em momentos de crise, acontecimentos dramáticos, etc.
A partir deste ponto podemos avançar para a segunda questão por detrás da corrente de opinião que se forma diante de determinados acontecimentos: a criação de um inimigo imaginário. Partiremos aqui da ideia defendida por Nildo Viana sobre o que é um inimigo imaginário. Para este sociólogo inimigo imaginário a “princípio pode ser definido com um grupo social que é considerado inimigo e que, portanto, deve ser combatido, sob formas variáveis e que não é um verdadeiro inimigo na realidade concreta, por isto ele é “imaginário”” (VIANA, 2015b). Tomando as palavras por suas definições Viana afirma ser necessário levantar algumas questões para entender como se criam os inimigos imaginários: quem produz o inimigo imaginário? Quais são os grupos sociais que podem se tornar inimigos imaginários? Em que contexto o inimigo imaginário se torna alvo da coletividade? (VIANA, 2015b).
Os inimigos imaginários são criados pela classe dominante “visando desviar a atenção para este suposto inimigo (...) é uma forma de deslocar o conflito de classe para um outro tipo de conflito (nacional, racial, religioso, etc.)” (Idem). Substitui-se o inimigo real pelo imaginário, e com isso todos os conflitos concretos e as formas de solução, criando desta forma obstáculos para a ação da classe revolucionaria: descobrir a realidade e transformar tal realidade. Assim, quem cria os inimigos imaginários são os membros do estado, os meios de comunicação, a classe dominante, a intelectualidade. Os inimigos imaginários em potencial numa dada sociedade são os grupos que carregam em si um histórico de preconceito, marginalização, oposição à ordem vigente e ao status quo. São grupos políticos, imigrantes, grupos étnicos, sexuais, religiosos, etc. A estes grupos são atribuídos a culpabilidade, a periculosidade, a inconfidência (não-confiança) e o exotismo (Idem).
O capitalismo global, ou regime de acumulação integral, tem em sua força de expansão a ação do neoimperialismo, isto é, por meio de políticas militares, organizações internacionais, tratados econômicos os estados imperialistas retomam uma política agressiva de imposição dos interesses do capital transnacional sobre os países subordinados, buscando ampliar a integração ou efetivar a integração ao mercado mundial nos países em estágio de capitalismo pouco desenvolvido. A política externa dos países imperialistas é a continuidade de sua política interna, buscando efetivar os interesses de suas classes dominantes. Para tanto, as sociedades internas de diversos países são manipuladas conforme os interesses do centro imperial, daí que constatamos que os EUA invadem países se justificando na defesa da democracia ou dos direitos humanos e em outras regiões apoiam a consolidação de ditaduras.
No caso dos países do Oriente Médio as políticas imperialistas buscam afirmar o controle sobre as fontes energéticas, ampliar o mercado consumidor, intensificar o processo de proletarização das populações nacionais (que em grande parte vêm de tradição tribal, de seitas) e impor governos alinhados com as políticas imperialistas. Esse processo é muito conflituoso, pois se de um lado, governos com características autocráticas (Arábia Saudita) e ditatoriais (Kwait) mantém-se firmes com apoio dos EUA, por outro lado, mudanças de lideranças, grupos e partidos no poder foram alteradas desde o processo de revolta popular iniciado no ano de 2011 denominado de Revolta Árabe, que tiraram do poder ditadores que se assentavam a décadas tais como Mouamar Khaddafi (Líbia), Hosni Moubarak (Egito) e Ben Ali (Tunísia). Esses levantes se demonstraram um fato inesperado para as forças imperialistas, pois além de derrubarem governos que mantinham a fonte do petróleo, ameaçou as lideranças políticas que estavam subordinadas aos interesses de Washington, tal como Arábia Saudita, Bahrein, Kwait.
As revoltas árabes por sua extensão, radicalidade (sem lideranças, seculares, reivindicações políticas e por melhorias nas condições de vida) e força (vários governos derrubados) apresentaram ao mundo outra feição das sociedades árabes, a força do proletariado em Alexandria, a força dos jovens no Cairo, das massas superexploradas da Líbia, da Tunísia, da inicial solidariedade internacional de organizações dos trabalhadores contra o governo de Bashar Al-Assad na Síria, ampliou a força dos povos curdos, ao que parece fez emergir uma nova vida social em Kobane (pelas notícias que de longe chegam, se bem que ainda sem muitas confirmações). Mas posterior à Primavera Árabe veio o Inverno Imperialista e com ele o Estado Islâmico, produto direto do apoio financeiro e militar dos países imperialistas (EUA, França, Inglaterra). Pois de onde viriam os modernos armamentos do EI? Sua moderna frota de caminhonetes japonesas, seus sofisticados sistemas de filmagem, gravação e roteirização dos massacres cometidos contra suas vítimas? Foi o apoio a obscuras forças paramilitares na Síria e no Iraque que possibilitou as condições para o surgimento do EI como um racha da Al Qaeda, que por sua vez tinha sido treinada e financiada pela CIA em fins dos anos de 1970 e começo dos anos de 1980.
O inimigo imaginário que as classes dominantes querem construir sobre a figura do islamismo busca confundir e ocultar os verdadeiros responsáveis pela barbárie que se espalha pelo mundo. Mas não podemos aceitar as correntes de opiniões que se forma, nem tampouco silenciarmos sob a onda de revanchismo e ignorância que se espreita. A luta cultural contra as ilusões criadas pela classe dominante requer considerarmos os movimentos políticos que acontecem pelo mundo, manifestarmos solidariedade e combater toda forma de racismo e xenofobia opondo-nos por meio da solidariedade internacional a todos os movimentos sociais que contestem a ordem estabelecida e apontem para novas relações sociais. O passado deve ser combatido, junto com todas as forças que ele representa.

Diego Marques, 14 de Novembro de 2015. 

Referências bibliográficas
VIANA, Nildo.  As representações cotidianas e as correntes de opiniões. In Revista Espaço Livre, Vol. 10, nº 9, jan/jun. 2015a.
VIANA, Nildo.  A invenção do inimigo imaginário. Disponível em http://informecritica.blogspot.com.br/2011/04/invencao-do-inimigo-imaginario.html Acessado em 14 de Novembro de 2015b.



[1][1] Usaremos aqui essa expressão tendo em vista a capacidade que ela tem de fazer as pessoas assimilarem o fenômeno que queremos explicar, isto porque pelos objetivos do texto buscamos nos posicionar diretamente sobre os fatos aqui relatados para um público mais amplo. Contudo, atentamos para os que nos leem, que essa ideia de capitalismo global possui diversos problemas, pois não dá conta da especificidade do momento atual do capitalismo, na medida em que trata-se do período de acumulação integral, intensificação da repressão, estados neoliberais, neoimperialismo, ideologias pós-modernas entre outros fenômenos, que são sinteticamente explicados na obra de Nildo Viana O capitalismo na era da acumulação integral.

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